Francisco Miguel, <br>banqueiro de amizades

Fernando Miguel Bernardes

Homem rico, de uma compreensão excepcional do Universo em várias das suas dimensões e áreas do conhecimento, autodidacta de muita leitura e viagem, de discussões profundas sobre os quês e os porquês da grandeza e sofrimento humanos; rico homem no humanismo que todo o seu ser transportava e em inúmeras ocasiões em actos se traduzia; não em teres e haveres materiais, como todos nós sabíamos – ou julgávamos saber...

- Chico, – assim o tratávamos, com o carinho e respeito que nos merecia – precisavas de uma gabardina, molhas-te e passas frio dissemos-lhe um dia de Inverno, o vento assobiava pelas vielas da Graça aonde íamos para um encontro, e redemoinhava a chuva miúda sobre nós.

Riu-se, e vimos que não sentiria tanto essa necessidade e nem teria dinheiro para uma aquisição dispendiosa; ao menos um casacão mais grosso, uma samarra ou coisa assim; sentíamos a situação porque, muitas vezes, juntos nos deslocávamos.

De pré-combinação, atraímo-lo certa tarde para um café na Baixa, e como quem calha no caminho da conversa vimos numa montra o que queríamos. Éramos dois, podíamos fazê-lo e dissemos-lhe: vamos aqui comprar qualquer coisas que te sirva.

Recusava, que suportava muito bem o tempo; mas acabou por aceitar.

Escolheu, nos seus olhos pequenos por trás dos óculos lia-se a satisfação pelo agasalho; e a sua alma, mais do que o mero corpo físico, sentia-se confortada pela amizade.

E nem imaginava ainda a extensão deste sentimento que percorreu toda a loja, aliás vasta, bem fornecida e melhor apresentada: Francisco Miguel era, ao que se deixará imaginar pelas primeiras linhas deste escrito e pelo que a seguir se verá, muito conhecido e querido em diversos ambientes e estratos sociais, e fora reconhecido pelo pessoal do estabelecimento; mas disso nós não nos apercebemos.

Encaminhado ao espelho grande que o mostrava de corpo inteiro, olhava-se de frente e de través, e houve sorrisos; que tal?, perguntou ele, vaidoso, e não mais despiu o impermeável.

Quando pedimos a conta ao modesto, mas cheio de personalidade conforme nos pareceu, empregado do balcão, foi lá dentro, demorou-se, regressou com passo lesto e disse: a gabardina está paga, oferta do pessoal.

Protestámos, de nada valeu. Ele e os colegas só quiseram os apertos de mão e o reconhecimento mútuo de um sentimento não muito bem definido, mas que se projectaria num futuro em que esse desenho melhor concretizaria.

Seria por este e outros factos semelhantes que o Francisco Miguel por vezes nos dizia, enigmático e como que em contra-mão: sou, e sempre fui um homem rico. Até de bens materiais..., concluía, então em voz baixa, pensativo.

Nós não conseguíamos compreender. Realmente, grande parte da sua vida passara-a nas prisões que desde 1926 tinham infestado o País; grande parte, e não erramos muito se dissermos quase metade dela, pois pouco lhe faltaria no festejado 25 de Abril para ter cumprido trinta anos de clausura em diversos «estabelecimentos prisionais» – como oficialmente se dizia –, incluindo uns quantos no Campo da Morte Lenta, no Tarrafal, da colónia penal de Cabo Verde. Então, como aceitaríamos ser, ou ter sido, ele um homem rico?

Em Baleizão nascera, alentejano de poucas falas antes de bem conhecer o interlocutor, de conversas longas e mansas e profundas depois de, e íamos sabendo das suas também difíceis passagens pelas cadeias de Caxias, Aljube de Lisboa, Peniche, e as tétricas celas de isolamento da Rua do Heroísmo no Porto.

Rico, tu? De espírito sim, e muito, e de conhecimentos vastos, e mais sérios ainda sobre comportamentos do ser humano...

De certa vez, explicou-se melhor: – Fui banqueiro. Posso até concretizar: dono de um Banco!

Perante o espanto dos presentes, mesmo habituados às surpresas que sobre ele íamos tendo conhecimento ao decorrer dos dias, foi desdobrando a meada: e ponho-lhe um B grande porque foi construído por mim; um tripé de sapateiro, a minha primeira profissão, de boa madeira de azinho e melhor assento de cabedal macio, de calfe, mesmo à medida do meu rabo de então... O banco era meu, embora houvesse outros colegas na oficina. Portanto eu era dono do banco. E ainda hoje é um dos poucos haveres importantes que possuo, uma riqueza da memória; quem pela primeira vê me roubou a liberdade e me levou, não se lembrou de levar o banco.

Rimo-nos, descontraídos. Ele não, e continuou.

Depois do 25 de Abril é que fiquei rico a sério – e aqui já esperávamos tudo o que o amigo pudesse dizer... e disse, – a nossa liberdade e os direitos de todos nós ficaram expressos na Constituição, não é verdade? Então eu pensei: agora sim, sou livre de comprar, e finalmente ter, casa própria; e há-de ser uma das melhores que houver em Lisboa, e precisamente na Avenida da Liberdade!

Francisco Miguel, como genuíno oriundo das terras secas, não ia ao mato sem corda: ao mesmo tempo que fazia espírito, punha a claro as contradições e esconderijos que infestam o caminho entre os direitos humanos adquiridos, e reconhecidos, e a possibilidade, a cada momento histórico, de deles nos apropriarmos...

E assim, pensador e actuante, se manteve até as forças de todo lhe faltarem e tombar, na verdadeira acepção da palavra, nos braços dedicados de amigos que no momento o acompanhavam; o que, convenhamos, só pode acontecer a um autêntico Banqueiro... de amizades.

 



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